De pupilo a professor - Gazeta Esportiva
Felipe Leite
São Paulo, SP
08/31/2023 07:00:51
 

Por Felipe Leite

A ‘ordem natural das coisas’ no futebol pede por uma jornada do herói. As 12 etapas tidas como necessárias para contar uma história impecável, digna de cinema, têm como passos iniciais a vivência do herói no mundo comum e o chamado à aventura.

Traduzindo para o esporte nacional: o contato inicial com o futebol, geralmente em um contexto socio-econômico difícil, e a oportunidade de alavancar a carreira a partir das categorias de base. Jorge Preá, ex-atacante do Palmeiras, subverte a lógica. Mas dispõe, igualmente, de uma história digna de cinema.

Preá começou na várzea, causou seu impacto no futebol profissional e voltou para a verdadeira paixão. O esporte não o enriqueceu — e o importante é não deixar a ‘peteca cair’. “Eu nasci homem, não jogador de futebol”, resumiu, em entrevista à Gazeta Esportiva na zona norte de São Paulo.

Mas o que significa não deixar a peteca cair? Oras, continuar colocando comida na mesa e pagando as contas. Preá, que já trabalhou como limpador de bocas de lobo e galerias em uma empresa contratada pela prefeitura de São Paulo, hoje constrói sua renda mensal em três frentes: emprego no Mercadão da Lapa, empreendimento comercial paulistano; atuação no futebol amador aos finais de semana, com uma rotina frenética; e, por fim, como professor em uma escolinha do Corinthians.

O atacante campeão do Paulistão de 2008 com o Verdão, hoje, dá aulas em um ‘braço’ oficial do maior rival.

Sim: Preá jogou ao lado de icônicos nomes daquele elenco, como Marcos, Denilson, Valdívia e Diego Souza.

Os dois adversários paulistanos, inclusive, se enfrentam neste final de semana pela 22ª rodada da Série A do Campeonato Brasileiro. O Derby ocorre às 16h (de Brasília) deste domingo, na casa do Corinthians.

De pupilo a professor

Por ironia do destino, quem comandou aquele Alviverde de 15 anos atrás, detentor do título, foi Vanderlei Luxemburgo — atualmente treinador do Timão. “Coincidência com o Vanderlei. Ele que me levou para o Palmeiras, né? Em 2008, fomos campeões juntos”, disse Preá.

Luxa não foi, entretanto, o cara que indicou Preá ao Chute Inicial — como é chamada a escolinha do Corinthians. Afinal, o lendário técnico assumiu o clube no início de maio deste ano, e Jorge trabalha por lá desde agosto de 2022.

O elo em comum tem outro nome e sobrenome: trata-se de Cleber Martins Camargo, de 45 anos. Clebão, como é conhecido, conheceu Jorge na várzea em meados de 2000 e passou a lecionar no Chute Inicial antes do amigo. Quando soube da disponibilidade de Preá, o indicou para a escolinha.

“Depois que saí do Palmeiras, não tive mais contato com o Vanderlei. Só conversei com o Nei, que era auxiliar dele. No Corinthians x São Paulo que teve recentemente (2 a 1 para o Timão, pela Copa do Brasil), eu fui até a Neo Química Arena para assistir ao jogo. Fui junto da Chute Inicial, a molecada foi também, mas acabei não encontrando com o professor. Fiquei na arquibancada com o pessoal e o outro professor desceu para o aquecimento”, explicou Preá.

“Não tive mais contato com ele, mas vida que segue, né? Não tem jeito, as vidas vão para caminhos diferentes e nós seguimos. É a vida. Ele é do Rio (de Janeiro), pegou o gostinho, foi para Vasco, Cruzeiro, Sport — enfim, outros times, né? Agora voltou para São Paulo para treinar o Corinthians e ainda não tive esse prazer de reencontrá-lo. Não está na minha agenda não (reencontro com Luxa), não vai somar nada. Se a gente se encontrar em algum lugar, algum restaurante, ou no próprio Corinthians — quando a gente for para o estádio com a molecada de novo —, logicamente vai ser bom. Vou agradecê-lo por tudo, sou muito grato ao que ele fez por mim. Mas essas coisas de marcar para se encontrar, difícil. Muito difícil. A agenda dele é até mais lotada que a minha, né? (risos)”, concluiu.

Rotina

A rotina do ex-atacante do Palmeiras é, de fato, corrida — e impede, pois, o reencontro com Luxa. De segunda a sexta, Preá trabalha — já há quatro anos — até o período da tarde no Mercadão da Lapa, nos dois açougues do ‘Seu Carlos’, como o chama. O emprego como entregador de carnes traz felicidade, sossego e uma boa relação com o patrão — em 2019, Preá teve grave lesão no tornozelo jogando na várzea e ficou afastado por quatro meses de qualquer atividade física.

Impossibilitado de trabalhar, recebeu total suporte de Seu Carlos.

Aos finais de semana, há dedicação total à várzea. Junto de outros famosos ex-jogadores profissionais — como Cristian, Domingos e Jobson, por exemplo —, Preá complementa a renda atuando em diversos times (Santa Rita e GTX, para citar dois), competições (Copa Pioneer, Especial de Mauá, Copa Martins Neto, etc.) e cidades (Cabreúva, Barueri, São Bernardo do Campo).

Trabalho no Corinthians

Para “correr atrás do ganha-pão” e dar mais conforto à família, Preá aceitou a indicação de Clebão. As aulas acontecem no Atlético Tremembé, um clube próximo ao Horto da cidade de São Paulo. De segunda a quinta-feira, das 18h30 às 20h, Jorge dá aula para alunos de nove a 13 anos.

“Está sendo legal poder ensinar a molecada. Um pouco difícil também, porque eles são bem verdes, né? A gente tenta passar o possível para eles entenderem o que nós queremos conseguir. Mas é legal seguir a evolução deles a cada treino”, detalhou.

A missão principal de Preá no Chute Inicial é preparar os alunos para as avaliações semestrais no Parque São Jorge. O Corinthians reúne todas as unidades da escolinha oficial e promove tais peneiras duas vezes por ano — quem passar, começa a treinar no clube de fato.

(Foto: Felipe Leite/Gazeta Press)

E o futuro?

Mas o que o futuro reserva para Jorge Preá?

“Sobre futuro no futebol… é difícil, a gente entra em outra esfera. Treinador, dirigente… não gosto. A gente vê muita coisa errada, e isso não é do meu feitio. Sei que em alguma hora, ‘na curva’, vou encontrar alguém errado. Você vê esses negócios de aposta e outras coisas nos bastidores… já falei isso tem vários anos, alguns duvidaram. Mas agora a gente vê que é bem do que eu falei. É só dinheiro, bem-estar. Prefiro trabalhar, pagar minhas contas direitinho do que atrapalhar o sonho de uma criança, de toda uma família só por causa de dinheiro. Prefiro não me envolver para não sujar meu nome, que eu zelo há tanto tempo. Claro que, se aparecer uma oportunidade muito boa com uma pessoa séria, não sou besta de não aceitar, certo? Mas até agora isso não aconteceu. Vou seguir minha ‘vidinha’ aqui de boa, com minha família perto de mim e vamo que vamo“, finalizou Preá.