Racismo no futebol é reflexo da sociedade, diz especialista - Gazeta Esportiva
Racismo no futebol é reflexo da sociedade, diz especialista

Racismo no futebol é reflexo da sociedade, diz especialista

Gazeta Esportiva

Por Ana Carolina da Silva e Olga Bagatini*

20/11/2015 às 09:00 • Atualizado: 20/11/2015 às 11:19

São Paulo, SP

"Tenho consciência do meu valor como ser humano", disse o volante Tinga (foto: Washington Alves/Cruzeiro)
"Tenho consciência do meu valor como ser humano", disse o volante Tinga à Gazeta Esportiva (foto: Washington Alves/Cruzeiro)

O dia 9 de janeiro de 2003 tentou garantir um pouco de equidade à comunidade negra do Brasil com a lei 10.639, que instituiu o Dia da Consciência Negra no calendário escolar nacional. Mais de uma década depois, porém, o País chega a um novo 20 de novembro ainda com muito a aprender e desconstruir. Como em toda análise política, teórica ou sociológica feita em solo brasileiro, o futebol não pode ser excluído do debate da ilusória democracia racial.


“O futebol é uma representação da sociedade, então ele também sustenta o mito da democracia racial. O torcedor vê os jogadores negros que se deram bem na carreira e cai na ilusão de que racismo não existe mais, de que eles têm as mesmas chances de chegarem lá”, explicou Manuel Alves Filho, jornalista e membro do Grupo de Estudos e Pesquisas de Futebol da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), em conversa com a Gazeta Esportiva. “Sendo que isso não é verdade. Não só para os jogadores, mas para os dirigentes, juízes, treinadores. O caminho para alcançar algum sucesso profissional sempre vai ser mais longo para eles, assim como a luta para se manter.”


A disseminação de informações progressistas feita pelos próprios movimentos sociais vai de encontro ao véu de impunidade dos estádios, e nem mesmo as novas arenas, com seus eficientes sistemas de vigilância, conseguem se manter imunes ao preconceito. Quanto mais tecnologia adotamos em nossa rotina, o número de casos de racismo parece crescer exponencialmente. Ledo engano: na era das redes sociais e da comunicação rápida, a diferença é que, hoje, as ocorrências são registradas e denunciadas em poucos cliques.


O caso mais recente a virar notícia envolveu o meia Michel Bastos. Autor do terceiro gol da vitória do São Paulo sobre o Sport, no último dia 31 de outubro, o jogador usou os dedos em um gesto de silêncio para responder às vaias que incomodavam a equipe nos compromissos anteriores, dentro e fora do Morumbi. Vinte e quatro horas depois, o atleta foi alvo de ofensas racistas em suas redes sociais. “Tenho que ficar quieto ainda?”, questionou o são-paulino em novo post no Instagram, desta vez em tom de denúncia.


Não deveria. Como já ficou provado em agressões anteriores, pouco adianta o silêncio ante um ato criminoso - destacado pelo artigo 140 do Código Penal Brasileiro, parágrafo 3: “se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência, a reclusão é de um a três anos e multa”.




“As redes sociais servem como plataforma para os dois lados, tanto para a denúncia, que precisa ser feita da forma mais rápida possível, quanto para o agressor, que encontra um meio direto de atingir a vítima com base em um possível anonimato que antes não existia. Então ela serve às duas convicções, e depende muito do que a gente faz dela. Mas é evidente que a exposição também permite uma contramarcha, permite que as outras pessoas se movimentem para denunciar e entender a gravidade desse ato”, ponderou Manuel Alves Filho. “Apesar dos discursos e da própria legislação, a nossa cidadania capenga ainda é muito baseada na segregação, como diz uma colega historiadora aqui do núcleo de pesquisa. É algo que sempre fizemos com os povos negros, indígenas, orientais, pessoas de outras orientações sexuais”, lembrou o jornalista.


O melhor exemplo de como o alarde pode ser eficiente é datado de 28 de agosto de 2014. Na ocasião, o Santos derrotou o Grêmio por 2 a 0 em Porto Alegre. A festa só não foi completa em função das ofensas racistas disparadas para o goleiro Aranha, hoje no Palmeiras. Tão logo percebeu o cenário hostil, o jogador comunicou a arbitragem de Wilton Pereira Sampaio, que não paralisou o duelo. Apesar de gritada por milhares, a injúria proferida por uma torcedora gaúcha se tornou destaque ao ser registrada pelas câmeras de televisão na Arena do Grêmio, cuja leitura labial permitiu a interpretação da palavra “macaco”.


“É evidente que a legislação está aí para punir e dar exemplo, mas não dá para ser porrada e cassetete o tempo todo. Até porque não se trata de um comportamento exclusivo dos estádios de futebol. A torcedora do Grêmio que ofendeu o Aranha pode até justificar que foi coisa do calor do momento, mas ela não chamou ele de outra coisa. Não usou o termo ‘mão de alface’. Ela escolheu uma ofensa de cunho racista porque já tem esses pensamentos no dia a dia. Na hora do jogo, ela simplesmente externou uma ideia preconceituosa que já estava na cabeça dela, como na de tantos outros. A diferença é que ela teve o azar de ser flagrada por externar uma ofensa que, possivelmente, já usava no dia a dia em conversas com amigos”, destacou o comunicador.




Ainda no Santos, o goleiro Aranha sofreu com as armas racistas mais de uma vez entre 2014 e 2015 (foto: Ivan Storti/Santos)
Ainda no Santos, o goleiro Aranha sofreu com as armas racistas mais de uma vez entre 2014 e 2015 (foto: Ivan Storti/Santos)

Hoje atleta do Palmeiras, Aranha viria a sofrer as dores do racismo meses depois, em janeiro desse ano. Desta vez, o arqueiro foi atacado pela própria torcida do Santos, clube que ainda defendia, por ter entrado na Justiça do Trabalho para cobrar salários atrasados pelo Peixe. “Chamar o Aranha de macaco é ofender o próprio macaco”, agrediu um torcedor, novamente sob o véu do anonimato. A postura do goleiro difere da adotada por Daniel Alves, que decidiu comer a banana que lhe foi arremessada em campo na vitória sobre o Villarreal, em abril de 2014, e se tornou o rosto de uma campanha intitulada “Somos todos macacos”.


Quem também optou por uma reação pacífica foi o volante Tinga. No início de 2014, o ex-jogador do Cruzeiro foi vítima de racismo durante uma partida contra o Real Garcilaso-PER, em Huancayo, pela Copa Libertadores da América. O gaúcho entrou em campo durante a etapa complementar e foi hostilizado pela torcida peruana, que passou a reproduzir sons de macaco sempre que o brasileiro tocava na bola. Tinga afirmou ter ficado muito incomodado com a situação, mas preferiu ignorar e continuar atuando. Em entrevista à Gazeta Esportiva, o ex-atleta disse ter perdoado os torcedores e lembrou que o preconceito, infelizmente, foi algo frequente ao longo de sua vida.


“Não tenho porque ter raiva. Tenho consciência do meu valor como ser humano. Naquele jogo, eu já estava com 35 anos. Você acha que foi a primeira vez que eu sofri racismo? Aconteceu várias vezes, não só comigo. Meus filhos ficaram tristes por ver como é a vida lá fora, mas isso não tira nossa autoestima e nossa alegria. É o que eu tento passar para eles”, afirmou o gaúcho. O pesquisador Manuel Alves Filho, no entanto, não vê benefício em apontar qual resposta funciona melhor. “Depende muito da repercussão de cada caso. O importante é que eles não deixem de se manifestar contra os atos de racismo, que não deixem de vir à frente se posicionando de forma direta contra isso”, afirmou.




Vítima de racismo contra o Santos, Diego Maurício destacou a lembrança pelo Rei Pelé (foto: Fernando Dantas/Gazeta Press)
Vítima de racismo contra o Santos, Diego Maurício destacou a lembrança pelo Rei Pelé (foto: Fernando Dantas/Gazeta Press)

Para tanto, o jornalista propõe uma roda de conversa com todos os envolvidos. Inclusive a imprensa esportiva. “Além de tomar essas atitudes que já tomamos, também deveríamos propor uma discussão geral sobre o assunto. Conversar com jogadores, dirigentes, juízes, treinadores, torcedores, empresários. Todos deveriam ser inseridos nesse debate até chegarmos a um modelo de sociedade que de fato seja válido. A gente aborda bastante como a imprensa fomenta a violência”, ponderou.


Neste ponto, Manuel usa como exemplo os torcedores que invadem o campo em busca de atenção, mas que não são mostrados pelas câmeras de televisão. “Se você deixa de mostrar, você não incentiva esse comportamento, porque tudo o que aquele cara quer é ser notado. Quanto mais alcance a imagem dele tiver, mais legal vai ser. Transferindo a discussão para todas as formas de violência, não só a racial, a imprensa pode até fazer o seu mea culpa, mas deveria refletir mais. Evitar termos bélicos nos textos, por exemplo. Já é tradicional o uso de palavras como ‘guerra’ e ‘batalha’ para descrever um jogo importante. Se o atleta é voluntarioso, logo se transforma em ‘aguerrido’. A linha portuguesa é rica e pode sustentar a rivalidade do futebol de outras maneiras”, apontou o pesquisador.


O Brasil libertou seus escravos há 127 anos, mas a dívida histórica para com a comunidade negra ainda está longe de ser quitada. O feriado de 20 de novembro é um passo discreto - e fundamental - para promover a reflexão sobre a desconstrução de preconceitos enraizados, exaltar a busca pela equidade e relembrar a luta dos negros que, por três séculos, tiveram seus direitos negados. “O Dia da Consciência Negra é para exaltar as lembranças dos nossos antepassados e lutar pela evolução da condição dos negros. Temos muito a melhorar. O combate ao racismo é uma questão de conscientização, educação e conhecimento”, disse Tinga.


Aliada ao estudo sociológico do futebol, a opinião do jogador que sofreu na pele chama a atenção para a importância urgente da educação no combate ao preconceito e à invisibilidade racial. “Não dá para pensar só em punição, temos que pensar em educação de maneira não-formal. Aprender a conviver com a diversidade e se entender como nação miscigenada, não importa quantos Dias da Consciência Negra sejam necessários para que os negros tenham voz”, finalizou Manuel Alves Filho.


*especial para a Gazeta Esportiva

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