Jeitinho brasileiro - Gazeta Esportiva
Tiago Salazar
Doha (Catar)
12/02/2022 06:30:15
 

O Catar é um país de costumes e tradições peculiares. Diferentemente do vizinho Dubai, que aposta em atrações e turismo, no Catar, a cultura e a religião regem o comportamento interno.

O cenário, portanto, é bem diferente do que se tem no Brasil. Mas a adaptação não é impossível. Tudo depende da disposição, da conscientização e do ponto de vista de cada um.

A aeronauta Julia Cruz Sodré, que é de Niterói, Rio de Janeiro, mora no Catar há cinco anos e aprova a relação custo-benefício.

“Eu gosto. É diferente, demorou um pouco para adaptar, mas eu gosto bastante. É um país seguro. E isso é a coisa mais importante para mim. Me sinto muito segura de sair na rua, sozinha”.

“Eu sinto muita falta da alegria que a gente tem no Brasil, todo mundo fala com todo mundo, você vê um amigo do amigo da prima e conversa. Aqui, você não tem isso. Eu sinto muita falta. Festa no Brasil, que é totalmente diferente. Mas, por causa da segurança, eu digo Catar. Porque, hoje em dia, quando vou para o Brasil, sinto que não pertenço mais àquele lugar. Eu sou do Rio, quando vou para lá, eu tenho medo, e eu não tenho isso no Catar”.

O sentimento é compartilhado pela professora Nathalie Costa, mãe de duas crianças e que mora no país há 13 anos.

“Eu amo o Catar. Acompanhei o Catar crescendo, era completamente diferente, e a segurança é algo muito diferente”.

Medo que gera renúncias e silêncio

Ao relatarem à Gazeta Esportiva experiências vividas no pequeno país do Oriente Médio, as brasileiras deixam claro que só é possível usufruir da infraestrutura e da qualidade de vida que o Catar oferece desde que haja uma aceitação sobre temas que geram repúdio de outras sociedades civis pelo mundo, como as questões que envolvem machismo, autoritarismo, direitos trabalhistas, direitos humanos e homofobia.

“Eu estou aqui, eu vim para respeitar o país e as regras. E, aqui, a mulher, infelizmente, não tem o lugar como o homem. Sempre que eu podia ter meu marido por perto, para resolver as coisas, no princípio, sempre era melhor ter ele por perto. Eu diria que é bem assim: homem e mulher, em prateleiras diferentes”, diz Nathalie. “Eu sei que no Brasil eu posso usar shortinhos, decote, e que aqui eu não posso fazer. Custa ainda adaptar”.

No primeiro mês após a mudança de país, Nathalie sofreu uma represália dentro de um supermercado por agir, involuntariamente, como se estivesse no Brasil.

Mulheres em uma vila em Doha durante a Copa. (Foto: Patricia de Melo Moreira/AFP)

“Estávamos na fila e uma senhora, completamente coberta, só com o anel de pérola para fora, estava perto da gente. E meu marido me disse, na fila, que íamos comprar uma TV. Minha reação foi de dar um abraço nele e dar um beijo no rosto, na bochecha”.

“Essa mulher virou para cima de mim com tudo, dedo no nariz, veio segurança, porque ela achou que eu tinha dado um beijo na boca do meu marido. Eu fiquei em estado de choque, eu estava no meu primeiro mês, não estava acostumada”.

Em compensação, nas ruas, a mulher jamais é abordada por um homem, garante Julia, de 27 anos.

“Muito sinceramente, eu não acho que é difícil para mulher aqui, porque numa situação normal, sem Copa, não existe assédio. Nenhum homem vai se aproximar de uma mulher, independentemente de a gente estar coberta ou não. As pessoas têm uma visão errada sobre isso. Nunca aconteceu comigo”.

Comunidade gay

Caio Sá Moreira nasceu em Poços de Caldas, Minas Gerais, e tem experimentado a experiência de viver no Catar há sete anos. Ele é homossexual e, portanto, para não ser preso e deportado, precisa esconder sua preferência em público. Ainda assim, Caio entende que o Catar traz mais segurança para ele do que o próprio Brasil.

“Eu não vou sair de mão dada na rua com algum namorado que eu possa ter. Posso fazer isso na Avenida Paulista, em São Paulo, posso fazer isso na Rua Augusta, mas eu também não podia fazer isso no bairro que eu morava, porque apanharia. Mas, por ter muito estrangeiro aqui, existem muitos gays, muitos bissexuais, muitas lésbicas, a gente tem a nossa comunidade”.

Caio reconhece que os encontros acontecem de maneira “clandestina”, mas diz não ter medo.

“No Brasil, apesar de ter muitos direitos, eu posso casar e adotar, se eu quiser, mas eu tenho direitos e não tenho a liberdade de sair na rua sem me preocupar se vão me bater, se vão me dar um tiro. Então, honestamente, eu não vejo tanta diferença”.

“É difícil? É. Obviamente, não quero viver aqui o resto da minha vida, porque aqui eu nunca vou poder ter meu marido, meus cachorros e meus gatos, mas, pela fase que vivo hoje, gosto de viver aqui”.

Primeira ministra da Dinamarca com as cores da bandeira LGBTQIA+. (Foto: Mads Claus Rasmussen/AFP)

Visão masculina

Afora o problema com a homofobia, o aeronauta de 34 anos, assim como Julia e Nathalie, destaca as vantagens que o Catar pode oferecer para quem decide conviver com as diferenças culturais.

“Aqui, você vai em um café, deixa seu celular na mesa, pega seu café, volta e o celular está lá. A segurança, para mim, é algo muito importante”.

“Nenhum lugar é perfeito e, aqui, apesar dos defeitos, gosto bastante. Eu me sinto melhor aqui, me sinto mais seguro aqui, ganho mais aqui do que eu ganhava no Brasil, fazendo a mesma coisa”.

A rigidez com a não exposição do corpo, aliás, não fica restrita à mulheres.

“Por incrível que pareça, eu também tenho problema com a vestimenta. Eu gosto de usar camiseta regata e, no verão, aqui faz sensação térmica de 55°C, mas não posso usar regata para não mostrar os braços”.

“Uma vez, eu estava no supermercado e se aproximou de mim uma senhora, muçulmana tradicionalíssima, e puxou minha manga. É algo que eu gosto? Não é. Me sinto incomodado? Sim. Mas estou aqui, preciso respeitar a cultura local”.

Estrangeiros marginalizados

Entre tantos preconceitos que os catarianos declaram sem qualquer receio ou pudor há o relacionamento nada harmonioso entre os chamados ‘locais’ e os estrangeiros, que correspondem a 85% da população e estão inseridos nas áreas de mão de obra e serviços.

“Muitas vezes, eu sinto que os ‘locais’ agem como se estivessem fazendo um favor, dando emprego para nós. Mas o que seria o Catar sem 85% dos estrangeiros que trabalham aqui? Então, a gente tem de adaptar, mas acho que o país também poderia se adaptar aos estrangeiros que moram aqui. Eles agem como se estivessem fazendo um favor para a gente, deixando a gente trabalhar aqui, o que não é verdade”, comenta Caio.

“Não existe ‘local’ fazendo trabalho de serviços. Eles furam a fila. E não pode reclamar”, complementa.

“Aqui, quando você vai num local em que eles estão presentes, te olham de uma maneira como se eles fossem superiores. Eles se sentem superiores, mesmo que a gente esteja comendo no mesmo restaurante. Te olham com aquele olhar de ‘eu sou muito melhor que você'”, afirma a carioca Julia.

Estrangeiros correspondem a 85% da população. (Foto: David Gannon/AFP)

Dos estrangeiros, aqueles mais fáceis de encontrar pelas ruas são pessoas da Índia, do Quênia, do Nepal e de Bangladesh, pessoas que estão no Catar devido à oferta de empregos e a uma moeda local de valor superior em comparação com seus países de origem. Atualmente, o rial está cotado a 3,64 em relação ao dólar americano. A busca por uma vida melhor faz com que esses imigrantes tolerem o preconceito e a ausência de direitos.

“Aqui, qualquer crítica, qualquer sugestão, não se vê, mesmo que não seja mulher. É proibido fazer um protesto na rua. Por exemplo, houve um caso, mês passado, de trabalhadores que estavam com salário atrasado. Fizeram um protesto na frente da empresa e foram todos deportados. E eram homens”, conta Caio.

Sabores brasileiros

Além de abraços e beijos, que no Catar não se vê nem mesmo em contos de fadas nos cinemas, os brasileiros sentem falta do sabor da terra natal.

“Feijão, farofa, uma água de coco, para tomar naquele verão, fresquinha. Era tudo que eu queria”, afirma Julia.

“Doce de leite e goiabada”, diz Nathalie, sobre o que gostaria de ter acesso. “Quando a gente vai ao Brasil, o carregamento de farinha de mandioca, feijão e polvilho é grande”, brinca a professora.

Torcedores da seleção portuguesa durante refeição em Doha. (Foto: Mahmud Hams/AFP)

“Guaraná e coxinha”, lembra Caio, antes de explicar que há alternativas.

“Existem pessoas aqui, brasileiros, que fazem comida para vender, normalmente para vender para brasileiros, mas com coisas que não se acha no mercado, numa padaria. É algo muito específico”.

Saldo positivo

O trio brasileiro garante que o Catar está evoluindo nas questões mais polêmicas. “Era um país muito quadrado, mas muita coisa mudou já. Hoje, digamos que é um retângulo”, metaforiza Julia.

Sem esconder ou minimizar as controvérsias, o que todos eles garantem é que é possível viver bem no país onde a Seleção Brasileira vai buscar o hexacampeonato da Copa do Mundo.

“A gente se adapta e acaba vivendo bem, porque aqui temos tudo da melhor qualidade. Os nossos amigos acabam se tornando nossa família. Os brasileiros, os latinos se acolhem muito. Hoje, tenho afilhadas, comadres, meus filhos têm primos. É a família que o Catar nos deu e eu jamais vou esquecer”, finaliza.