Um feito histórico em um palco místico - Gazeta Esportiva

03/21/2023 05:00:16
 

Por Rodrigo Matuck – Santos/SP

Ao longo dos seus 107 anos, a Vila Belmiro já se acostumou a receber milhares de decisões pelos mais diversos torneios. Nas arquibancadas, gritos de incentivo para o Santos em quase 100% dos casos. Nesta segunda-feira, dia 20 de março de 2023, no entanto, foi diferente.

Impedido de atuar na Arena Inamar, em Diadema, pela falta de iluminação artificial, o Água Santa decidiu levar a semifinal do Campeonato Paulista de 2023, contra o Red Bull Bragantino, para a Vila Belmiro – cerca de 56 km de distância da casa do Netuno.

Apesar da distância, a decisão foi bem aceita pelos aquáticos – como são conhecidos os torcedores do Água Santa. 50 ônibus partiram de Diadema para Santos recheados de adeptos.

Para tentar lotar a Vila Belmiro, os cartolas do Água Santa decidiram distribuir alguns ingressos na porta do estádio. Cada dirigente tinha uma cota de 100 bilhetes, que poderiam ser entregues da forma que gostariam. Com isso, entraram familiares, amigos e até mesmo alguns torcedores que esbarraram com os mandatários minutos antes da bola rolar.

Nas bilheterias, os ingressos estavam esgotados. Assim, quem não foi premiado com um bilhete de graça, recorreu aos cambistas. Entre uma venda e outra, Marlon relatou à reportagem que estava comercializando entradas por cerca de R$ 50,00, o dobro do preço que pagou. Caso o cliente reclamasse, ele abaixava R$ 10,00.

E foi exatamente assim que uma família de São Vicente entrou. Torcedor do Corinthians, Renato (42 anos), que costumava frequentar a Vila Belmiro quando jovem, aproveitou para apresentar o estádio a sua esposa Renata e seus filhos, Felipe e Diego, de 13 e 9 anos, respectivamente.

“Viemos tentar comprar ingresso aqui na porta, mas na bilheteria estava esgotado já. O Adriano já conhece, mas eu e os meninos ainda não. Eles estão muito ansiosos”, disse Renata, de 40 anos, enquanto o marido negociava com o cambista.

O sentimento era quase o mesmo entre todos: ansiedade. A expectativa, além de ver o Água Santa pela primeira vez na história em uma semifinal de Paulistão, era conhecer a histórica Vila Belmiro, palco onde Pelé se eternizou.

Com o coração dividido entre Corinthians e Netuno, Marcelo Alemão voltou ao Urbano Caldeira pela segunda vez na vida – a primeira foi para acompanhar uma partida do Timão – e aproveitou para levar o filho, Matheus, que estava inquieto para logo conhecer o estádio.

Já o santista Rildon – que estava vestindo uma camisa do Flamengo – levou o amigo e vizinho palmeirense Sérgio para a Vila. Camuflado com uma camisa azul, Sérgio não queria perder a chance de entrar na casa alvinegra antes da reforma, programada para o segundo semestre deste ano. “Pode ser a primeira e última vez que venho. Assistia pela televisão o Pelé jogar aqui”, disse.

Os moradores de Guarujá, no entanto, reclamaram da organização do evento. E a insatisfação pôde ser percebida em mais alguns torcedores. Alguns ônibus ficaram presos na estrada devido a um acidente. Com isso, muitos chegaram na Vila Belmiro com a bola já rolando. A pressa atrelada à ansiedade gerou tumulto nos portões do estádio. O movimento só ficou tranquilo nas ruas quando o relógio marcava 25 minutos do primeiro tempo.

Do lado dos visitantes, o mesmo problema. Os ônibus que levaram os torcedores do Red Bull Bragantino atrasou e chegou ao palco da partida faltando 10 minutos para começar o confronto. Entre os fãs estava Carlos Alberto Colombo Andrade, mais conhecido como Beto Leão.

Beto Leão na entrada da Vila Belmiro antes de Água Santa x Bragantino (Foto: Rodrigo Matuck/Gazeta Esportiva)

Sobrinho-neto de José de Assis Gonçalves Júnior, primeiro presidente da história do Bragantino, Beto Leão foi mascote do clube por mais de 40 anos e, mesmo com hidrocefalia – um acúmulo de líquido excedente nos espaços normais dentro do cérebro que dificulta a sua locomoção – não perde uma partida do time de coração.

“Eu tenho dois filhos. Um de nascença e outro o Bragantino. O mesmo amor que tenho pelo meu filho, tenho pelo Bragantino. Eu já fugi do hospital para ver um jogo”, contou.

E o amor pelo Massa Bruta vai passando de geração em geração. Os irmãos Olímpio Pannunzio Jr, de 66 anos, e Luis Eduardo, de 58, aproveitaram a oportunidade para levar o jovem Eduardo, de 13 anos, pela primeira vez à Vila.

“O campo bom, ambiente também. É melhor que jogar em qualquer outro estádio. O gramado também ajuda, é bom. Foi bom para o Bragantino vir para cá o jogo”, contou Olímpio, que mora a menos de 1 km do Estádio Nabi Abi Chedid, em Bragança.

E o comércio?

A decisão de levar o confronto entre Água Santa e RB Bragantino para a Vila Belmiro gerou muita desconfiança para os donos de comércios ao redor do estádio. Por não conhecer o público que iria aparecer, muitos comerciantes pensaram em nem abrir os seus respectivos restaurantes.

Normalmente tomados de santistas, a Confraria do Alemão e o Na Vila decidiram “arriscar” e abriram as portas. O resultado surpreendeu, positivamente, a todos.

“Me surpreendeu a torcida do Água Santa, pessoal educado, pedindo as coisas com muita educação. A gente tinha medo por ser uma torcida diferente, que a gente não estava acostumado, mas foi ótimo. Movimento muito bom”, disse Tereza, irmã do Alemão, dono da Confraria.

“Foi melhor que jogo do Santos. O pessoal fica cozinhando aqui, enrolando até começar o jogo. Hoje o pessoal veio de fora, veio bastante turista, assim como em jogos de feriado. Eles chegam com fome da viagem, compram e vão rápido para o estádio. Foi melhor que em jogo do Santos”, completou um funcionário do Na Vila.

Torcedores acompanha partida pela TV em um bar em frente à Vila Belmiro (Foto: Rodrigo Matuck/Gazeta Esportiva)

Arquibancadas lotadas

Dentro do estádio, o clima foi de muita festa. Torcedores do Água Santa lotaram as arquibancadas da Vila Belmiro. Alguns ficaram sentados até mesmo na escada devido a quantidade de gente nos assentos. O setor dos visitantes também foi tomado por bragantinenses. Ao todo, 11.507 pessoas marcaram presença.

Com apenas nove minutos, quem fez a festa foram os alvinegros. Alerrandro recebeu cruzamento rasteiro e, de letra, tocou para o fundo do gol. Mesmo em desvantagem, o Água Santa seguiu sendo empurrado pelos fãs. Então, aos seis da etapa final, veio o alívio do empate, após tento de Lucas Tocantins.

O empate persistiu até o apito final. Assim, a semifinal foi decidida nos pênaltis. As cobranças foram de muita tensão nas arquibancadas, ainda mais depois de Bruno Mezenga perder a primeira. A festa, porém, estava guardada para o final. O Netuno venceu por 4 a 2 e se classificou para a grande final do Campeonato Paulista pela primeira vez na história, levando os aquáticos à loucura nas cadeiras da Vila Belmiro e frustrando os torcedores do Bragantino.

“Uma mística. É um caldeirão, eu já estive aqui contra e sei o quão difícil é. O gramado nos proporciona jogo, poderíamos escolher outros gramados, mas optamos por aqui. Gostamos de um jogo bem jogado. Muitos deles tiveram a primeira oportunidade de jogar na Vila, foi incrível”, disse o técnico Thiago Carpini sobre a Vila Belmiro após a vitória.