O Castelo do Rei - Gazeta Esportiva

Guarujá - SP
12/30/2022 06:00:11
 

Quatorze anos anos antes de sua morte, Pelé recebeu a Gazeta Esportiva em sua residência no Guarujá, litoral de São Paulo, acompanhado de Dorval, Mengálvio, Coutinho e Pepe. Relembre abaixo como foi aquele dia, em um recorte da reportagem especial publicada em 2008. 

Geílson abriu a porta da residência de Edson Arantes do Nascimento no Guarujá, litoral paulista, para a TV Gazeta e a Gazeta Esportiva. Com o mesmo nome do atacante que era ridicularizado por torcedores quando defendia o Santos, o caseiro de Pelé vestia uma camiseta de campanha promocional do patrão e uma calça jeans surrada na manhã da sexta-feira de 31 de outubro de 2008. Ele e um enorme cachorro (que “não morde, não”, segundo Geílson) eram os únicos moradores presentes na área externa da casa, situada em uma estrada de terra e relativamente distante da praia.

Os visitantes espalharam mochilas, máquinas fotográficas, filmadoras e equipamentos de iluminação à beira da piscina. “Será que o Pelé ainda bate uma bolinha ali?”, perguntou um, que apontava para o minicampo de futebol, metros à frente. “Talvez ele jogue lá em cima”, respondeu outro, referindo-se à quadra de tênis sobre os vestiários.

A curiosidade tornou despercebida a chegada de mais uma pessoa ao local, cerca de meia hora depois. Baixo (1,72m) em relação à maioria de seus convidados e com trajes tão simples (camiseta azul desfiada, calça esporte e sapatilhas pretas) quanto os dos demais, Pelé demorou a ser notado. “Vocês já tomaram café?”, perguntou, com a sua voz inconfundível, enquanto distribuía tapas nos ombros. “Gente, é o Pelé que está aqui!”, alguém finalmente reconheceu, surpreso. “Aja como se estivesse em sua casa, Rei”, acrescentou o seguinte. O Atleta do Século passado assim o fez.

Após distribuir uma série de autógrafos, Pelé comandou uma excursão pelos aposentos de sua casa no Guarujá. O passeio começou no hall de entrada, precedido (assim como a maioria das portas) por um tapete com o nome “Nascimento” em destaque. As paredes do saguão são repletas de ilustrações e fotografias do Rei do Futebol, que ficou com os olhos marejados ao rememorar sua trajetória como jogador. “Ainda bem que estou passando mais tempo em casa. Como o contato com essas fotos é mais frequente, a emoção diminui um pouco”, sorriu.

Pelé brincou ao mostrar “as pernas que pareciam dois palitos de picolé” de um quadro seu da época de criança, indicou o “quarto coração” que o suor formou sobre o uniforme do mineiro de Três Corações na Copa do Mundo de 1970 em outro e, por fim, alisou a fotografia em que aparece ao lado do pai Dondinho e do filho Edinho. Vários porta-retratos com imagens de familiares (inclusive da ex-esposa, Assíria) também decoram a sala.

No momento em que Pelé deixava o hall, o caseiro Geílson apareceu com outros três convidados. Mengálvio, Coutinho, que morreu em 11 de março de 2019, e Pepe, com quem o Rei do Futebol jogou no Santos, interceptaram o dono da casa no corredor. “Aonde você pensa que vai, Negão?”, sorriu Coutinho. Foi o estopim para beijos e abraços emocionados (Pepe chegou a lacrimejar) entre os ex-atletas. Mas ainda faltava um integrante daquele que ficou conhecido como o Ataque dos Sonhos, vitorioso em 70,4% dos jogos que disputou e autor de 2.092 gols.

Dorval, que morreu em 26 de dezembro de 2021, já havia impedido o sucesso da última oportunidade de a mais famosa formação do clube paulista se reencontrar. No final do ano anterior, ele fora o único a faltar à festa de aniversário de um ano de fundação da “Escolinha do Rei”, em Santos. Os demais colocaram as suas assinaturas no muro do local, na Avenida Conselheiro Nébias, como homenagem. Dorval jamais deixou seu autógrafo registrado ali.

Desta vez, Dorval apenas se atrasou. Passados alguns minutos, ele chegou com duas enormes sacolas. “Quero que vocês assinem esse monte de camisas do Santos. Costumo mandar algumas para o escritório do Pelé, mas só aceitam duas de cada vez, no máximo. Para garantir, também trouxe o meu miojo e uma cervejinha”, brincou Dorval.

Pelé não deixou por menos e contou duas vezes a história de uma das viagens da equipe do Santos à França, na década de 1960. “Tiramos um baita sarro do Dorval porque ele estava se atracando com alguém que achava que era uma mulher. Na verdade, era um baita traveco. Então, ele respondeu para nós: ‘Não tem problema, eu disse para ele que eu era o Pelé’. Vê se pode?”, gargalhou o Rei do Futebol. Em seguida, pediu licença para se retirar com os amigos à sala de projeções de sua casa. “Vou fazer uma surpresa”, prometeu Pelé. Os ex-jogadores voltaram com camisetas retrô do Santos. Todas com o número 10 às costas.

Devidamente uniformizado, o Ataque dos Sonhos seguiu para o minicampo de futebol, onde Pelé costumava bater bola com o filho Joshua. Apenas para posar para fotos. Pouco atrás do gramado, o Rei do Futebol se distraiu com relíquias que guardou de sua carreira em uma sala empoeirada. “Esses cocos que ganhei como troféu parecem nádegas, não? São únicos”, disse, entretido. Em seguida, vestiu um sombreiro mexicano e socou o ar, como fazia para comemorar os gols marcados na Copa do Mundo de 1970.

Já era hora de gravar um programa para a TV Gazeta, que foi ao ar em 14 de dezembro de 2008. O time de camisas 10, então, relembrou à frente das câmeras de televisão os seus feitos. Nos intervalos, Pelé caminhava à cozinha para conversar com o caseiro Geílson. “Preciso ver como está o miojo do Dorval”, riu. Coutinho era ainda mais bem-humorado. Lembrou que o apelido de Mengálvio era “Babão”. “E olhem como ele está gordo agora. As pessoas na rua até duvidam que esse aí foi jogador de futebol”, provocou.

Mengálvio, por sua vez, contestou a veracidade das histórias contadas por Pepe no livro “Bombas de Alegria – Meio Século de Memórias do Canhão da Vila”. “Mas do que ninguém duvida é da força do chute dele. Ele não queria cruzar nunca, e sim acertar o gol. Tanto é que nossa cabeça doía quando errava”, comentou. Pepe rebateu: “Às vezes, acho que eu não recebia a bola por ser o único branco no meio dos negões”. No final, os cinco cantaram juntos as músicas que compuseram nos tempos de Santos. A maioria das letras menciona o “chulé do Zito”.